Arquitetura e BIM

Militante BIM (meio fanático), parto do conhecimento que produzi sobre a relação entre projeto e obra, tema a que estou ligado desde os tempos da ESBAL e ateliers por onde passei e fui formado.

O recurso a uma ferramenta de modelação que permite espacializar todas as componentes de um projeto, nativas de estudos parcelares pouco habituados a espacializar, altera profundamente o trabalho do arquiteto coordenador, detetando automaticamente os conflitos entre componentes de várias proveniências. Pelo lado da arquitetura, o bloco de desenhos que o Siza nos veio ensinar a todos a ter à mão, e a modelação BIM que nos permite espacializar e visualizar o resultado, entraram rápido e instalaram-se na nossa prática quotidiana, da qual não poderá haver regresso, sendo que o passado, o presente, e o futuro irão ter de dialogar.

Havendo países onde já é obrigatória a submissão a licenciamento dos projetos em BIM e em grandes empreendimentos públicos e privados, estando a meta definida em Portugal para 01 de janeiro de 2030, escrevi o que penso sobre o tema:

Três notas de aviso à navegação sobre arquitetura e BIM compulsivo
1. O BIM não serve para desenhar, mas para modelar, em linguagem de dados;
2. Ao contrário do desenho, o BIM não é acessível a todos (democraticamente), mas só a elites técnicas que dominem a linguagem dessa tecnologia;
3. BIM verdadeiro, e BIM falso são irmãos, um modelando verdades e o outro misturando verdadeiro e falso na mesma linguagem, sendo difícil destrinçar.



1. O BIM não é um programa de desenho, mas uma linguagem de dados

Tratando-se de uma linguagem, encontraremos mais apoio naqueles que refletiram sobre o sistema lógico da linguagem, do que em tratadistas do saber fazer em arquitetura, ou seja, mais em Wittgenstein do que em Vitrúvio ou Alberti, pelo que me permito transcrever alguns pontos chave da teoria desse autor.

Para Wittgenstein, o papel de uma linguagem consiste em afirmar ou negar os factos. Partindo da sintaxe da linguagem, determinamos o significado de uma frase desde que saibamos o que significam as palavras. Para que uma determinada frase possa afirmar um facto concreto, seja qual for a construção da linguagem, deverá haver elementos comuns entre a estrutura de uma frase e a estrutura do facto. Aquilo que deve ser comum à linguagem e ao facto não pode, segundo o autor, ser em si mesmo e por seu lado, dito numa linguagem. Poderá, de acordo com a sua terminologia, ser apenas mostrado, mas não dito, pois tudo o que poderíamos dizer deveria também ter a mesma estrutura (do facto e não da linguagem).

Quando recorremos ao desenho ou à maquete, a prática ensina-nos a usar essas linguagens 2D e 3D para resolver problemas que ocorrem durante a conceção de factos arquitetónicos, destacando-os para linguagens de representação, onde os poderemos resolver sem construir e demolir, mas riscando e apagando, colando e descolando, havendo elementos comuns entre essas representações 2D e 3D e os factos, que vamos solucionar para depois transferir para a realidade edificada.

A primeira condição que se requere numa linguagem ideal será a de haver um único nome atribuído a cada coisa simples, e nunca o mesmo nome para diferentes coisas simples.

Este tema é seminal e vamos pagar pela demora em o fazermos. Na preparação dos Jogos Olímpicos de Barcelona de 1992, Maragall incumbiu o IPC (Instituto Politécnico da Catalunha) de dar nome às coisas e codificar todos os trabalhos de construção civil, assegurando que, a coisas iguais, fosse atribuído o mesmo nome. O resultado demonstrou que o custo de obras na Catalunha foi significativamente mais baixo do que na Andaluzia onde, naquele mesmo ano, teve lugar a Expo 92.

Esta experiência de boa governança teve efeito multiplicador em muitos países, mas, infelizmente, não em Portugal, estando ainda hoje por definir, em linguagem cientificamente creditada, cada "coisa” ou trabalho a executar em construção civil e atribuir-lhe um código de classificação, que permita organizar um sistema lógico numa linguagem universal que possa ser lida e entendida por todos, antes da obra.

Quando apareceu o PRONIC ainda houve alguma esperança, mas tratava-se de um sistema equivalente à codificação de medicamentos, no qual cada farmácia criava os seus próprios códigos. A Parque Escolar ainda obrigou todos os projetos a codificar os trabalhos pelo PRONIC, mas, sem correspondência de códigos entre projetos, a experiência não teve qualquer efeito multiplicador e extinguiu-se.

Continuamos assim sem atribuir nomes nem códigos àquilo que projetamos para o mercado de empresas construtoras concorrer e, uma delas, construir. Esta situação é muito prejudicial para o diálogo entre quem projeta e quem constrói, que sempre viveu e se alimentou da livre comunicação, nos dois sentidos, entre projeto e obra.

Refere Wittgenstein, "Construímos quadros dos factos”. Um quadro é uma transposição da realidade em que, aos objetos reais correspondem elementos do quadro. O quadro é em si mesmo um facto. O resultado de que as coisas tenham uma certa relação entre umas e outras é representado pelo facto de que, no quadro, as coisas têm uma certa relação entre umas e outras.

O gémeo digital BIM constitui um "quadro” dos factos arquitetónicos edificados, mas constitui um facto em si mesmo, que pode ser transacionado no mercado digital. O investidor, habituado a ativos do mundo real, compra e vende de seguida com lucro, submete a licenciamento para vender com projeto aprovado, ou constrói e vende no final da fileira de produção. A isto veio juntar-se o mercado digital em BIM suportados em gémeos digitais, que constituem ativos de outra natureza (digital).
O que ocorreu na indústria dos táxis com a entrada das plataformas no negócio irá agora ocorrer no negócio imobiliário mais relevante, poupando o investidor em comissões e ganhando as grandes tecnológicas em rendas (de tipo neo-feudal).

Segundo Wittgenstein, "No quadro e naquilo que é representado deverá haver qualquer coisa de idêntico de modo que cada uma possa ser, em absoluto, um quadro da outra”. Aquilo que o quadro deve ter de comum com a realidade a fim de a poder representar à sua maneira – com justeza ou falsidade – é a sua forma de representação. A possibilidade de uma proposição representar um facto baseia-se em que, nela, os factos são representados por símbolos. Aquilo que designamos de constantes "lógicas” não é representado por símbolos, mas estão elas próprias presentes na proposição como nos factos. A proposição e o facto devem manifestar a mesma "multiplicidade” lógica, que deve ser ela própria representada, dado dever ser uma propriedade comum ao facto e ao quadro.

"O mundo consiste em factos”: A designação de sistemas complexos pressupõe proposições, de igual modo que as proposições pressupõem a designação de sistemas simples e a designação do simples revela ser, logicamente, precedente. O mundo é integralmente descrito quando todos os factos (atómicos) forem conhecidos, tendo em conta que se trata da totalidade dos factos. Não basta nomear todos os factos que o mundo contém para o descrever. É igualmente necessário conhecer os factos "atómicos” de que esses objetos são constituídos. 

Esta relação lógica entre o modelo no seu conjunto (modelo federado, que integra os modelos de todos os estudos parcelares do projeto), e factos "atómicos” digitais (objetos produzidos pela indústria e convertidos em linguagem BIM/ficheiros rfa), é seminal e origem de toda a articulação da linguagem, para o bem e para o mal, ou seja, para o verdadeiro e para o falso, a que acresce a impossibilidade de recorrer à acuidade visual e dos sentidos que nos permitem, até no mercado, distinguir um produto fresco daquele que o não é.

A teoria das proposições moleculares em Wittgenstein conduz o autor à sua teoria de construção da função de verdade.
Uma função de verdade de uma proposição p é uma proposição que contem p de tal modo que a sua veracidade ou falsidade dependa apenas de p ser verdadeiro ou falso e, do mesmo modo, uma função de verdade de várias proposições p, q, r, … é uma proposição que contém p, q, r, …. Em que a sua veracidade ou falsidade dependa apenas de p, q, r, …. serem verdadeiros ou falsos. *

Na linguagem BIM todas as proposições atómicas referentes a materiais naturais (areia, água, etc.,) ou produtos simples (aço, cimento Portland, etc.,) poderem ser inseridos na modelação pelo nome sem qualquer restrição, mas tal não acontece com os materiais de produção industrial, onde cada um, para além do nome genérico (telha, porta, retrete, etc.), os dados constantes do ficheiro (rfa) do produto inserido na modelação referem exclusivamente ao modelo e marca selecionados, contrariando as disposições do CCP sobre a proibição de referência a marcas.

Podemos avançar às cegas pelo BIM dentro sem preparar as etapas de passagem de uma linguagem de símbolos desenhados para uma linguagem de modelação de dados mas, em meu entendimento e salvo melhor opinião, deveríamos refletir e programar as etapas, capacitando as empresas de projeto no treino da linguagem, as empresas construtoras na melhor exploração e rentabilização das oportunidades criadas pelo digital, os donos da obra na preparação das formas de manutenção de ativos edificados e o legislador na antecipação às alterações que o BIM vai exigir.


2. Ao contrário do desenho, o BIM não é uma linguagem acessível a todos (democrática), mas só elites técnicas podem dominar essa tecnologia

Importa agir de modo coordenado e integrando todos os atores da fileira de construção:
2.1. Dando formação a profissionais que juntem conhecimentos de arquitetura, materiais de construção e processos construtivos, com desenho e tecnologia BIM;
2.2. Entendendo que ao não existir atualmente gente capacitada e em quantidade, este será um processo lento que vai levar tempo e terá elevados custos;
2.3. O cluster AEC não tem capacidade económica para fazer por si próprio esta transição, pelo que necessitará de programas de apoio.

Poderíamos estar a trabalhar em BIM desde há várias décadas não fora a guerra entre a Apple e a Microsoft que afundou o Archicad (a Infor/Porto fazia impecável trabalho de apoio aos arquitetos). Com o Archicad os arquitetos aprenderam a modelar em vez de desenhar em CAD, utilizando programas desnecessariamente ultrarrigorosos, quando o sistema construtivo tem geralmente tolerância de cm.

O Archicad era um programa democrático de modelação, que se batia no mercado a preços de outros programas CAD, oferecendo muito mais, mas foi afundado e caiu no esquecimento, reaparecendo passado décadas travestido de Revit com licenças a preços exorbitantes, acessíveis apenas a elites, e não à generalidade dos arquitetos. No decurso da história da arquitetura, desde o tempo dos papiros e seus palimpsestos para quem tinha menos recursos, que nunca ocorreu tamanho estreitamento de acesso a ferramentas da arte de projetar, como o agora imposto pelo sistema de licenças.


3. O BIM verdadeiro, e o BIM falso, são irmãos gémeos. Um diz verdades e o outro mistura verdades com mentiras recorrendo à mesma linguagem tornando difícil destrinçar entre o verdadeiro e o falso.

Arquiteto, faça-me sff um "boneco” para entregar na Câmara me está a pedir, que eu depois não preciso mais de si nem do projeto para nada, pois sei tudo do que necessito e o que quero fazer.

Todos ouvimos esta, e tudo assim foi enquanto a firmitas das edificações era definida por métodos gráficos que os arquitetos dominavam ao fazer o "boneco” e os "mestres de obra”, ou construtores civis também, quando construíam. 
Ao tempo, os mestres de obra sabiam interpretar um desenho, sem necessitar da definição até ao parafuso, pois dominavam as técnicas de construção que estavam implícitas na representação desenhada, em toda a sua conformidade lógica relacionada com o ato de construir. 

Um médico obriga-se a prestar juramento, tal como um tradutor oficial, ou um perito judicial e forense, pois não há meios de escrutinar os seus atos sem repetir o ato médico, a tradução do documento ou a perícia, por outrem que não os primeiros.
Tenho o pressentimento de que a AI só venha ainda complicar mais esta questão (será futuramente o programa de AI "Dr. Watson” a escrutinar o ato médico? Ou será o médico a escrutinar o programa de AI Dr. Watson?).

Sabemos que os dados parametrizados introduzidos podem ser verdadeiros ou falsos e esta situação depende exclusivamente da qualidade (ou falta dela) de quem os introduz. Podemos admitir que, se no mundo real do edificado existem tantos esquemas de ocultação com o objetivo de enganar o próximo, não teremos qualquer dúvida de que no mundo digital, os gémeos digitais, estarão ainda mais sujeitos e fragilizados do que os factos reais, pela incapacidade de saber separar o trigo do joio sem se dominar a ferramenta, o que obrigará à criação de uma espécie de "clero” BIMológico a cuja "Ordem” incumbirá zelar pela triagem da informação verdadeira (do tal "I” entre B e M), e pela deteção e alertas da informação falsa.


Fernando Bagulho
Arquiteto, membro da Direção da APPC

outubro 2023



* Wittgenstein, Tractatus Logico-philosophicus / Editions Gallimard 1961